Contratos de seguro de vida e a cláusula de exclusão de riscos derivados de pandemia

O PET Direito Explica é uma série de vídeos informativos organizados pelos estudantes do PET Direito da UFPR, que visa abordar e trazer para a comunidade as principais discussões jurídicas levantadas atualmente no Brasil. Aqui você encontra as principais informações trazidas pelo nosso primeiro informativo e os artigos e reportagens utilizados para sua elaboração e recomendadas para aprofundamento.

No vídeo de hoje: Contratos de seguro de vida e a cláusula de exclusão de riscos derivados de pandemia

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1) O QUE É UM CONTRATO DE SEGURO DE VIDA?

– O Código Civil estabelece, no artigo 757, que o contrato de seguro é aquele em que o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou coisa, contra riscos predeterminados.

– De acordo com a Superintendência de Seguros Privados (Susep), seguros pessoais se diferenciam dos seguros patrimoniais por tratarem diretamente da pessoa e dos interesses do titular, tais como nos seguros de vida, seguros funeral, seguros de acidentes pessoais etc.[1]

– Especificamente no seguro de vida, o objetivo do contrato é garantir conforto financeiro à família logo após a perda de um ente querido.

– Juridicamente, os riscos cobertos são aqueles previstos na apólice ou nas condições gerais do seguro e que indicam situações em que a seguradora se obriga a indenizar os beneficiários adimplentes.

– Os riscos excluídos são aqueles expressamente previstos em contrato e que afastam o dever de indenizar da seguradora. Devem ser interpretados de forma restritiva, tal como preceitua o artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor.

 

2) SINISTRALIDADE E PANDEMIA.

– Em 11/03/2020, a Organização Mundial da Saúde reconheceu o caráter pandêmico do surto de Covid-19.[2]

– Os efeitos reais da pandemia se refletem de variadas formas em diferentes tipos de seguros. Seguros veiculares e residenciais devem verificar uma redução na taxa de sinistralidade, ao passo que seguros pessoais, como os de vida ou saúde, devem se deparar com um aumento substancial nos avisos de sinistro.

– O aumento exponencial na sinistralidade costuma trazer grandes impactos financeiros sobre as seguradoras, o que faz com que riscos derivados de pandemias, epidemias ou endemias sejam contratualmente excluídos.

– Antevendo eventuais discussões judiciais sobre a cobertura em casos de morte provocada pelo coronavírus e tendo em vista a dificuldade geral enfrentada pelos segurados, muitas seguradoras declararam publicamente que irão pagar indenizações de seguro de vida para esses casos.[3]

– Contudo, ainda resta saber: é lícita a cláusula expressa de exclusão de riscos causados por pandemias?

 

3) A NATUREZA DA CLÁUSULA DE EXCLUSÃO DE RISCOS CAUSADOS POR PANDEMIAS.

– No Brasil, o mercado de seguros privados é fortemente regulado pelo Estado, submetendo-se às diretrizes da Superintendência de Seguros Privados que, dentre outras coisas, decide a licitude e a forma das cláusulas de exclusão presentes nos contratos e garante a sua uniformidade.

– Na regulamentação de microsseguros de pessoas, a Susep publicou a Circular nº 440, de 27 de junho de 2012, que expressamente autoriza, em seu artigo 12, inciso I, alínea d), a exclusão de riscos causados por “epidemia ou pandemia declarada por órgão competente”.[4]

– Com relação ao seguro de pessoas não há a mesma previsão expressa da Susep, contudo, a lista de verificação (setembro de 2012) do órgão indica em seu item 69: “Riscos excluídos – Epidemias e Pandemias (Orientação da Procuradoria Federal junto à SUSEP). Caso a sociedade seguradora queira excluir a morte do segurado decorrente de epidemias ou pandemias, deverá redigir ‘epidemias e pandemias declaradas por órgão competente’”.[5]

– Boa parte dos contratos de seguros pessoais inclui, em suas condições gerais, a cláusula de exclusão de riscos em caso de pandemia, apesar de muitas das seguradoras ter declarado que não irá fazer uso de tal cláusula.

– Tramita no Congresso o projeto de lei nº 2113 de 2020, proposto pela senadora Mara Gabrilli, que busca tornar obrigatória a cobertura securitária sobre óbitos decorrentes de pandemia. Contudo, se aprovada, tal lei valerá apenas para os contratos firmados após sua entrada em vigor.

 

4) A ORGANIZAÇÃO DAS SEGURADORAS E A POSSIBILIDADE DE AFASTAMENTO DA CLÁUSULA DE EXCLUSÃO.

– Com o dinheiro proveniente do pagamento de prêmios, seguradoras têm seu patrimônio dividido em três fundos: 1) um fundo mutual, de onde saem os recursos para quitação das indenizações; 2) um fundo para alimentar o canal de distribuição, responsável pelo pagamento de corretores e intermediários; 3) um fundo destinado ao custeio de gastos administrativos e de tributos e de onde se extrai o lucro propriamente dito.

– Os valores do fundo mutual devem ser aplicados e investidos, para que não sejam corroídos pela inflação, contudo, exige-se a aplicação em investimentos seguros, para que o pagamento das indenizações não seja prejudicado e o direito dos contratantes seja assegurado.

– Em situações de aumento repentino e excessivo da sinistralidade, a seguradora se sobrecarrega com gastos destinados à liquidação dos sinistros, assim como enfrenta a desvalorização das bolsas de valores e a estagnação econômica, fatores que exercem impacto direto sobre os investimentos do fundo mutual.

– Dessa forma, a lógica da cláusula de exclusão é a de evitar a falência financeira da seguradora e garantir o pagamento habitual das indenizações cobertas, sem que sejam afetadas pelas condições excepcionais geradas pela pandemia.

– Ainda assim, muitas seguradoras optaram por se solidarizar e efetuar “pagamentos por liberalidade”, isto é, o pagamento das indenizações ainda que se tratem de riscos excluídos pela cláusula de pandemia. Esse tipo de pagamento é possível, mas apenas pode ser realizado a partir de recursos próprios da seguradora, e não do fundo mutual, integrado por dinheiro advindo dos segurados. Este pode apenas ser utilizado para o pagamento de riscos cobertos e contratualmente previstos. Entretanto, a receita líquida de investimentos derivada desse fundo pode, juntamente com o fundo para pagamentos administrativos, ser utilizada para o pagamento de indenizações relativas a riscos não cobertos em apólice.

– Portanto, as seguradoras possuem liberdade de indenizar riscos não cobertos a seus segurados, desde que tais indenizações não afetem ou comprometam o fundo mutual. Tal medida solidária é possível em tempos de pandemia ou exceção, e não se trata de prática habitual.

– Sabe-se, assim, que é possível afastar a cláusula de exclusão dos riscos relativos à pandemia. Mas a questão que permanece é: tal afastamento é obrigatório? É lícito que a seguradora negue pagamento de indenização por meio dessa cláusula?

 

5) A (I)LICITUDE DA CLÁUSULA DE EXCLUSÃO DE RISCOS CAUSADOS POR PANDEMIA.

– Inicialmente, é importante reconhecer que a pandemia constitui uma circunstância agravadora da possibilidade de realização do risco e não uma causa propriamente dita. A causa da morte ou do dano à pessoa é a doença individualmente compreendida, ou seja, no atual contexto, o coronavírus, e não a pandemia como um todo.

– O aumento da sinistralidade ocorre não apenas devido às mortes por Covid-19, mas também em razão de pessoas que vieram a falecer por outras enfermidades e não possuíram acesso ao sistema de saúde, sobrecarregado por causa da pandemia.

– Não se pode, entretanto, interpretar ampliativamente a cláusula de exclusão para que todas as coberturas sejam afastadas na circunstância de pandemia. Portanto, as coberturas sobre doenças habitualmente indenizáveis continuarão se aplicando, da mesma forma que em situações de concausa entre Covid-19 e outra doença coberta, a morte deve ser indenizada, tendo em vista a interpretação em favor do consumidor.

– Mesmo com relação aos óbitos decorrentes exclusivamente de Covid-19, é possível que a cláusula de exclusão não se aplique, uma vez que a morte não é resultado direto do risco pandemia, mas sim da doença individualizada, assim como acréscimos repentinos de sinistralidade devem ser contidos por técnicas de precaução e proteção de risco tomadas administrativamente pelas seguradoras mediante contratações de resseguro e planejamento financeiro.

– Há ainda precedente no Superior Tribunal de Justiça que permite uma maior amplitude interpretativa no que diz respeito ao pagamento de indenizações do seguro de vida, o que facilita a utilização solidária do fundo mutual dos seguros em casos excepcionais.[6]

– Portanto, a tendência é de que a cláusula de exclusão de riscos de pandemia seja afastada pelos tribunais, o que explica a antecipação feita por muitas seguradoras de realizar o pagamento por liberalidade.

 

6) O FUTURO DAS SEGURADORAS E AS LIÇÕES DA PANDEMIA.

– Existe o receio de que a interpretação ampliada, proveniente do contexto de pandemia, seja utilizada pelo judiciário para que indenizações sobre novos riscos não cobertos, tornem-se condenações comuns nos tribunais, utilizando-se o argumento teleológico em prol do bem comum, previsto no artigo 5º da LINDB, ou em prol do consumidor segurado, como previsto no artigo 47 do CDC. Tal tendência jurisprudencial implicaria diretamente no aumento do valor do prêmio, para que esse novo fator seja compensado.

– Contudo, ainda que haja resseguradores contribuindo na quitação de indenizações, tal liberalidade é fruto de uma condição excepcional e deve ser aplicada com cautela, sob pena de comprometer financeiramente as seguradoras.

– De qualquer maneira, diante da situação concretamente enfrentada, é possível que as seguradoras se adaptem aos novos riscos, aumentando o valor geral dos prêmios para a inclusão de riscos relacionados a pandemias e epidemias, assim como sugere-se a criação de um pool de resseguro obrigatório, especificamente para atender as excepcionalidades das pandemias.

Referências utilizadas:

[1] http://www.susep.gov.br/menu/informacoes-ao-publico/planos-e-produtos/seguros/seguro-de-pessoas

[2] https://guiadafarmacia.com.br/oms-declara-pandemia-de-coronavirus/

[3] https://exame.com/seu-dinheiro/seguradoras-flexibilizam-e-passam-a-cobrir-morte-por-coronavirus/

[4] https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=242756

[5] http://www.susep.gov.br/setores-susep/cgpro/setores-susep/cgpro/copep/seguro-de-pessoas

[6] AgInt no REsp 1728428/SC, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/02/2019, DJe 01/03/2019

 

Sugestões de leitura:

ALMEIDA, Marília. Seu seguro de vida cobre coronavírus? Estas apólices passarão a cobrir. Exame, 31/03/2020. Disponível em: https://exame.com/seu-dinheiro/seguradoras-flexibilizam-e-passam-a-cobrir-morte-por-coronavirus/ – lista de seguradoras que cobrem corona

CARLINI, Angélica L. Pandemia de coronavírus e contratos de seguro – Algumas reflexões preliminares. Migalhas, 09/04/2020. Migalhas Contratuais. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/324161/pandemia-de-coronavirus-e-contratos-de-seguro-algumas-reflexoes-preliminares

NAVEGA, César Tavella. O contrato de seguro e a pandemia da covid-19. Migalhas, 08/04/2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/323999/o-contrato-de-seguro-e-a-pandemia-da-covid-19.

NOBRE, Noéli. Projeto torna nulas cláusulas de seguro que excluam cobertura de dano por pandemia. Câmara dos deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/660124-projeto-torna-nulas-clausulas-de-seguro-que-excluam-cobertura-de-dano-por-pandemia/.

OMS declara pandemia de coronavírus. Guia da farmácia, 11/03/2020. Disponível em: https://guiadafarmacia.com.br/oms-declara-pandemia-de-coronavirus/

POLIDO, Walter A. Coronavírus e o contrato de seguro. IN: CORONAVÍRUS e Responsabilidade Civil. Impactos Contratuais e Extracontratuais. MONTEIRO FILHO, Carlos Edson do Rego. ROSENVALD, Nelson. DENSA, Roberta. (coords.). São Paulo: IBERC – Foco, 2020, p. 129-146. Disponível em:  https://www.editoraroncarati.com.br/v2/Colunistas/Walter-Polido/Coronavirus-e-o-Contrato-de-Seguro.html.

SEGUROS de pessoas. SUSEP, maio de 2020. Disponível em: http://www.susep.gov.br/menu/informacoes-ao-publico/planos-e-produtos/seguros/seguro-de-pessoas

SUSEP. Circular nº 440 de 27/06/2012. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=242756

SUSEP. Lista de Verificação para Seguro de Pessoas – Set/2012. Disponível em: http://www.susep.gov.br/setores-susep/cgpro/setores-susep/cgpro/copep/seguro-de-pessoas

STJ. AgInt no REsp 1728428/SC, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/02/2019, DJe 01/03/2019.

TZIRULNIK, Ernesto. Reflexões sobre o coronavírus e os seguros privados. Conjur, 15/04/2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/covid19-seguros.pdf

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